Resenhas

A festança popular de Zé Modesto

Aos versos escritos pelo compositor e violonista Zé Modesto para “Tribo”: “Dividir, seja a comida/ Pra gente viver melhor/ Come bem quem come junto/ Com mais gente ao seu redor”, podemos, tranqüilamente, acrescentar à idéia original: canta mais bonito quem junto da beleza vocal está; toca mais belo quem ajuntado a outro tocador se põe.

Pregador da ciência do somar para multiplicar, Modesto preparou Xiló como quem cultiva uma semente que se fará ramo, será tronco e logo virará frondosa ramagem a sombrear o sol.

Fiando-se na certeza de que quem divide amplia, Zé pegou um enorme peneirão e cercou-o de mãos competentes. Ao ato de peneirar música entregaram-se a percussionista Priscila Brigante, o violonista e arranjador Jardel Caetano e o violonista e compositor Mário Gil. E toca de girar e rodar. E foi um tal de joga pro alto e roda e gira e de novo ao alto, que o excesso se foi. Restou o fino sumo do fruto docemente musical.

Posta de lado a sobra, restou na tela da bateia o extrato perfumoso do que recende a interior, a capim, a noite de luar do sertão e a esterco deixado no chão pelo rebanho cuidando de buscar boa pastagem. E assim é de fato, cria mais belezas quem, como Zé Modesto, se cerca de belezas nascidas também em outras cabeças.

E de muitas mãos cresceu a árvore dona do lenho que deu vida à sonoridade pensada por Zé Modesto – não há som no álbum que não venha de instrumento esculpido em madeira. A estas mãos somaram-se vozes ­– Ceumar, Rubi, Renato Braz, Mateus Sartori, Nhambuzim, Marcelo Pretto, Ana Leite e Zé Vicente – que ampliaram o sentido de vida musical a emprenhar Xiló.

Álbum independente, mas com bem-vindos apoios, este segundo trabalho de Zé Modesto tem 12 faixas, todas compostas por ele, algumas em parceria. Nelas, o ritmo se soma à poesia popular e às melodias, tudo absolutamente simples, tudo despudoradamente brasileiro. Convite à meditação, que a simplicidade facilita, o repertório se encadeia numa seqüência muito bem articulada em que tudo tem a ver com o que veio antes e com o que se seguirá.

Xiló começa com “Esteira” (Jardel Caetano e Zé Modesto). A percussão feita de madeiras, auxiliada pelo som grave do baixo acústico, prepara a entrada do violão que harmoniza para o vocal feito por Ana Leite, Dalci e Nhambuzim.

Chega “Antífona”. A delicadeza da voz de Ceumar (como ela canta, meu Deus!) realça a religiosidade das festas do interior. O cello, nas mãos competentes de Adriana Holtz, torna profana a festança, ainda mais junto à rabeca de Zé Gomes – reiterada por Modesto em “Meio Mistério”, na qual musicou a “Ave, Maria”.

A divertida “Bedô” (Zé Modesto), com sua levada de farra do boi maranhense, vem pela voz de Marcelo Pretto. Mas é também por meio de “Desvãos” (Zé Modesto) que Xiló crava sua flecha certeira na grande alma da brasilidade. Inicialmente cantada à capella pela voz surpreendente de Mateus Sartori e logo acompanhada pelo violão, seus versos dizem “soprar, soprar, soprar...”

Tem “Para o Ernesto”, tema instrumental de Zé Modesto tocado por ele com seus violinos, e também “Pirapora” única faixa cantada no CD por Zé Modesto. Tem Rubi e tem Renato Braz – aquele brilha e faz chispar “Sobrevidas” (Zé Modesto); este vem igual ao outro, afinação límpida (vixe, Maria!) e fechando Xiló com “Tribo” (Zé Modesto). Tudo o que foi concebido por Zé Modesto reflete o cuidado de não desperdiçar nada. Tudo tem de valer a pena. Tudo tem de ser música.

Aliás, o álbum vem numa caixinha talhada em madeira que o abriga e também ao encarte feito com papel reciclado.

E assim, de tanto cuidado que a ele foi dispensado, o CD ganha história e graça e se põe à disposição para ser sentido. Feito de emoções profundas, ele já está nos ares da vida. Como a vela que carrega o barco e a brisa que vem e leva tudo ao mar e ao ar, Xiló embrenha-se pelo fundo e pela superfície. E o canto e a canção não se fazem de rogados: assoprados, vão.

 

Aquiles Rique Reis, músico, vocalista do MPB4



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