Resenhas

Faça virar música II – Batuque

Quem passa a vida pensando a música popular como expressão mais significativa e abrangente da cultura da terra, espanta-se, algumas vezes, com o fato de certas genialidades não serem reconhecidas de imediato, por óbvias que pareçam. E volta e meia a resposta esteve o tempo todo na ponta do nariz, como os óculos da Dona Benta.

Por que é que a poesia de Kléber Albuquerque não saiu ainda correndo estrada, espalhando a subversiva substância de reinvenção do mundo que a move? Vai ver, respondem os óculos, com sua estranha voz de fábula, que por falta de vontade de ver, preguiça ou medo da queda do dominó do status quo já tão confortável.

Mas não vamos simplificar. Há outras questões de imensa gravidade, e a primeira delas é o viciado circo de mídia que integra o aparelho (re)produtor de redundâncias da indústria cultural. Com dinheiro, ou com censura econômica, a voz que desafina, afaste-se-a. Alguns inventores de mundos beberam gás ou engoliram chumbo ardente por incapacidade de lidar com isso – e o anjo torto torquatiano, que o orientou a desafinar o coro dos contentes, disso sabia, enquanto ria.

A (re)pressão de tal máquina afasta apreciador de criador e criador de apreciador (ôba: não é a mesma coisa). Há que haver esforço de ambos os lados, é natural, para que se rompa a malha que embaraça o contato. Isso implica, do lado do criador, em ousar. Do lado do apreciador, implica em abandonar o tal status quo já tão confortável.

Ou, mais uma vez, reinventar o mundo, que é o jeito que se tem de passar por ele com satisfação. E a reinvenção poética do mundo – essa satisfação – não precisa ser só alegria. Reinventa-lo, ao mundo, é rearrumar seus signos, empilhar suas peças em ordem nova.

A poesia de Kléber Albuquerque faz isso. Ninguém passa incólume por ela. Depois de ouvi-la, há uma sensação curiosa de conforto e desconforto. Conforto por ver que tudo pode ser ordenado de novas formas. Desconforto, ou ansiedade, ou inquietude, em ver, reparar, dar-se conta – ao moverem-se as peças – o quanto há para ser mexido nessa, perdão, casa de Orates.

A poesia de Kléber carrega, como toda construção inteligente, senso de humor sutil (o que, perdão novamente, é quase redundância: humor é necessariamente sutil), quase sempre tendo como mote a perplexidade do próprio poeta.

Vêm essas peculiaridades embrulhadas em outra, a especificidade da construção musical. Como tantos grandes gênio da canção, Kléber não é um virtuose, nem precisaria, pois persegue o insondável acasalamento a três perfeito (persegue e consegue) de palavra com a melodia, harmonia e ritmo. Ou talvez acasalamento a quatro – pois sua maneira de cantar, de se portar, de olhar, de provocar com mímica acaba sendo indissociável de sua criação.

Esse texto tinha pretexto de apresentar Faça Virar Música II – Batuque, novo trabalho de Kléber, gravações que ele chama de domésticas, artesanais, exercícios criativos de auto-pirataria. Traz treze faixas gravadas com mínimo de recursos e máximo de talento. É brilhante. Trata-se do segundo volume da obra lançada em 2003 que foi, certamente, embora de forma um tanto silenciosa, um dos grandes acontecimentos da música daquele momento.

Para não ser outra vez redundante, esperando que seus reptos sejam aceitos. Vire o objeto, ponha-o para girar, faça virar música. A melhor delas.

Mauro Dias, janeiro de 2006

texto escrito para o lançamento do cd artesanal “Faça Virar Música II – Batuque”



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