Resenhas

A canção é o melhor desvio

Certa vez, cedendo entrevista a um jornal por conta do lançamento de um disco, falei a palavra “cancionista” em meio a uma resposta sobre a tradição da canção brasileira. Depois vi a matéria publicada e notei, espantado, que a expressão viera acompanhado de um “sic” entre parênteses.

“Sic”, segundo o dicionário, é um advérbio latino que significa “assim, deste modo”, usado para indicar que o texto original está reproduzido tal como foi dito, por mais estranho ou errado que pareça. Mas no mais das vezes é apenas um sinal de arrogância e desinformação. O jornalista por certo julgou que eu houvesse inventado a palavra, simplesmente desconhecia a sua existência. Pois “cancionista” também está no dicionário e quer dizer exatamente “pessoa que compõe canções”. O fato de um jornalista cultural desconhecer a existência da palavra “cancionista” talvez seja sintomático de um crescente desinteresse, um quase desprezo pela canção nos dias de hoje. É notável um interesse cada vez maior por uma música mais sensorial, e o sucesso atual da música eletrônica atesta isso.

Mas há, à revelia de jornalistas desinformados e de uma platéia pouco curiosa, alguns grandes compositores em ação, verdadeiros artesãos da canção, transpirando e dando fôlego renovado a essa arte que alguns já chegaram até a apregoar extinta. Pois a canção sobrevive em trabalhos como o de Kléber Albuquerque, em seu faro melódico apurado, com certo pendor à dicção dos repentes e desafios nordestinos (apesar de paulista nascido em Santo André) e no seu fino trato com a palavra.

Se a canção para alguns é arte decadente, isso deve-se em parte ao declínio da poesia da canção. No país de Noel Rosa e Chico Buarque, poderíamos, sem danos, trocar a bíblica menção a “falsos profetas” para “falsos poetas”, tamanha a avalanche de papo furado travestido de “poesia” nas FMs do país. Pode parecer fácil fazer canção, mas não é. A propósito, o bom compositor é aquele que faz parecer fácil o seu ofício, que chega à máxima síntese, ao apuro do estilo sem soar ostensivo e presunçoso, a ponto de parecer que a sua canção sempre existiu, que não houve ninguém a elaborá-la, a burilar seus sons e seus versos.

Em “Desvio”, seu novo disco, a poesia de Kléber não se rende a facilidades, é incisiva, urgente, lírica. Por ele desfilam uns versos cortantes (“furei a camisa na brasa do meu cigarro”), outros engenhosos (”nua pele de luar / mel do manjar de Iemanjá)”, todos inspirados, alguns dos quais poderiam constar em qualquer antologia dos mais belos da música brasileira, sem dever a ninguém. À frente da lista, estes dois primores de concisão e lirismo: “arrastando os olhos feito sandálias” (em “Maluca”) e “olha o céu desestrelado, cor de fita isolante” (em “Brasa”).

Não bastasse isso tudo, suas melodias são sempre envolventes, dotadas daquela alquimia necessária (e hoje rara no ambiente da canção) de requinte e simplicidade. Trafegando com desenvoltura por um sem número de levadas e ritmos, Kléber mostra que é sim senhor um cancionista. E um senhor cancionista, diga-se. A atmosfera algo moura de algumas de suas canções não deve ser mera coincidência. Afinal, ele é um talentoso exemplar daquilo que os ibéricos costumam chamar de “cantautor”, o poeta/cantor, o trovador, personagem que tanto prezam.

Poderia continuar tecendo loas ao cara, mas o próprio Kléber ensina que “o melhor caminho é o desvio”. Então, desviando de maiores solenidades, talvez baste apenas dizer isto: Kléber é um baita poeta. E a poesia dispensa maiores adjetivos.

Zeca Baleiro, junho de 2006

texto escrito para o lançamento do cd "Desvio"



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